Linha do Horizonte: 2024, 26 Out.

Reunião (Mass, 2021) de Fran Kranz

Realização e Argumento: Fran Kranz. Produtores: Fran Kranz, Dylan Matlock, Casey Wilder Mott, J.P. Ouellette. Produtores Executivos: Marshall Rawlings, Michael Lee Jackson, Douglas Matejka, Joe Abrams, Nico Falls, Allison Estrin, Henry Russel Bergstein. Co-produtores: William Thoma, Andrew Davies, Marissa Ghavami. Produtoras: 7 Eccles Street, Circa 1888, 5B Productions. Distribuidora: Bleeker Street. Direção de Fotografia: Ryan Jackson-Healy. Direção Artística: Mia Lyon Cherp. Montagem: Yang-Hua Hu. Som: Kevin Seaton. Música: Darren Morze. Casting: Henry Russel Bergstein, Allison Estrin. Guarda-roupa: Michele Minailo. Elenco: Breeda Wool (Judy), Kagen Albright (Anthony), Michelle Carter (Kendra), Martha Plimpton (Gail), Jason Isaacs (Jay), Reed Birney (Richard), Ann Dowd (Linda), Michael White (professor de piano), Campbell Spoor (aluno de piano). Duração: 110 minutos. Estreia Mundial: 30 de janeiro de 2021, Sundance Film Festival, EUA.

A trama de Reunião, a primeira longa-metragem de Fran Kranz, decorre numa pequena igreja episcopal norte-americana, onde dois casais se reúnem a fim de confrontar um trauma comum. É deliberada, por parte do realizador, a escolha deste local sagrado para o acolhimento e enquadramento das experiências humanas fundamentais que vêm a ser debatidas na tela: o luto, a culpa e a busca pela reconciliação — Reuniãoconvida-nos a mergulhar nesse espaço que não é apenas o ponto de encontro para o diálogo, mas também um local onde uma ferida comum pode começar a sarar.

Embora no filme se retrate uma realidade específica e circunscrita, o alcance universal das problemáticas abordadas é notável. É também neste âmbito que Kranz amiúde nomeia a Comissão pela Verdade e Reconciliação da África-do-Sul pós-apartheid, encabeçada pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, bem como o conceito de justiça restaurativa, como duas das suas influências mais decisivas. O labor e legado de Tutu prendem-se com a árdua, mas vital, tarefa que encetou de moderar o confronto de experiências dolorosas, compreensivelmente irreconciliáveis, pela via do diálogo, tendo em vista abrir caminhos para a reconciliação nacional. As declarações do teólogo — “O perdão, a reconciliação e a reparação não eram moeda corrente no discurso político, (eram) mais próprias da esfera religiosa.” — iluminam a busca por compreender o incompreensível da qual o filme em apreço se faz permear.

O título original do filme, Reunião, ocupa um papel crucial no âmbito do deslinde das suas múltiplas camadas de significação e do modo como estas dialogam entre si. Em inglês, “mass” pode, eventualmente, referir-se ao aspeto “massificado” dos tiroteios em escolas (“mass shootings”), numa alusão ao horrendo evento que move a narrativa. Contudo, “Mass”, com um M maiúsculo, diz respeito à celebração litúrgica cristã da “Missa”. A celebração da missa reúne fiéis em comunhão, pedindo-lhes que examinem os seus corações. Este jogo de palavras é fundamental para abrir a discussão fílmica, partindo da meditação sobre aquilo que a Missa representa fundamentalmente no Cristianismo: não apenas um ato de devoção, mas também um encontro com a graça divina e o sofrimento de Cristo cristalizado na eucaristia — ocasião de reflexão, de reconciliação e a possibilidade de renovação espiritual.

Se considerarmos o pano de fundo minimal da trama, as opções cenográficas de Fran Kranz adquirem crescente eloquência. A imagem do crucifixo na parede, a cruz no colar de Linda (Ann Dowd) e o coro que ensaia no andar de cima, não são acessórios; mas elementos que realçam o semblante espiritual de uma penosa conversa que discorre sobre a vida, a morte e o perdão. A igreja, por sua vez, torna-se mais que mero espaço físico — converte-se num lugar alegórico de comunhão, onde a fragilidade humana se encontra com o potencial da cura e, enfim, a catarse. A pari passu com as personagens que metabolizam os seus sofrimentos pessoais ao mesmo tempo que se esforçam por ouvir o sofrimento alheio, somos relembrados da noção cristã de um sofrimento humano partilhado — do alento no ato de perdoar e de estender a nossa empatia ao próximo.

No filme, este gesto de reflexão comunitária é cinematograficamente — com mestria — estendido ao público, que é convidado a participar do encontro. Também nós somos compelidos a permanecer sentados em desconforto, durante toda a conversa. O diálogo entre os pais desenrola-se num único cenário em (virtual) tempo-real, desprovido de flashbacks ou de outros dispositivos dramático-narrativos externos à sala da reunião que possam remeter para o passado debatido. Enfim, o realizador solicita que nos engajemos no momento presente e que sejamos testemunhas da jornada destas pessoas.

A experiência cinematográfica, como o ritual religioso, propicia o encontro. A estética minimalista do filme e a marcada primazia concedida ao diálogo promovem uma sensação de intimidade que opera no sentido de convidar o espectador a partilhar da jornada emocional na tela. Jason Isaacs, que interpreta Jay Reunião, coloca-o da seguinte forma: “A conexão humana acontece em grandes salas escuras quando as luzes esmorecem e o grande ecrã se acende. Algo de mágico acontece quando nos são contadas histórias em conjunto. Filmes como este, profundas experiências emotivas, fazem-nos sentir menos sozinhos.” Experienciar coletivamente o cinema pode, assim, ser compreendido como um ritual em si mesmo – uma ocasião na qual somos impelidos não apenas a ver, mas a refletir e a comungar.

Inês Mariano