E Agora, Onde Vamos? (Ou Halla La Weyn? / Et maintenant on va où?, 2011)
Realização: Nadine Labaki. Argumento: Nadine Labaki, Jihad Hojeily, Rodney El Haddad. Produtores: Nadine Labaki, Anne-Dominique Toussaint. Produtores Executivos: Lara Chekerdjian, Abla Khoury. Co-produtores: Hesham Abdel Khalek, Romain Le Grand, Tarak Ben Ammar. Produtoras: Rotana Film Production, Chaocorp, Les films de Beyrouth, Pathé, Les films des Tournelles, France 2, Prima TV, United Artistic Group. Distribuidoras: Rotana Studios, Pathé. Direção de Fotografia: Christophe Offenstein. Direção Artística: Cynthia Zahar. Montagem: Véronique Lange. Som: Michel Casang. Música: Khaled Mouzanar. Casting: Abla Khoury. Guarda-roupa: Caroline Labaki. Elenco: Claude Baz Moussawbaa (Takla), Layla Hakim (Afaf), Nadine Labaki (Amale), Yvonne Maalouf (Yvonne), Antoinette Noufaily (Saydeh), Julian Farhat (Rabih), Ali Haidar (Roukoz), Kevin Abboud (Nassim), Petra Saghbini (Rita), Mostafa Al Sakka (Hammoudi), Sasseen Kawzally (Issam), Caroline Labaki (Aida), Anjo Rihane (Fatmeh), Mohamad Akil (Abou Ahmad), Gisèle Smeden (Gisèle), Khalil Bou Khalil (presidente), Samir Awad (padre), Ziad Abou Absi (imã). Duração: 110 minutos. Estreia Mundial: 16 de maio de 2011, Festival de Cannes, França.
E Agora, Onde Vamos? (2011) de Nadine Labaki, retrata as (des)aventuras de uma aldeia remota e assolada pela guerra onde uma mesquita e uma igreja se erguem lado a lado e o cemitério local é separado em dois lotes por uma estrada de terra batida: um muçulmano, outro cristão. Labaki conta-nos a história de um grupo de mulheres dispostas a ir até às mais extraordinárias instâncias (por vezes blasfemas) a fim de impedir a eclosão de violência armada entre os seus homens.
Nesta aldeia, a ligação ao mundo exterior é estabelecida por uma ponte — pouco mais que uma ruína — que atravessa um desfiladeiro vertiginoso, cuja missão de percorrer diariamente, com intuito de assegurar os bens essenciais dos seus habitantes, recai sobre dois adolescentes e um motociclo. Esta linha de vida precária, simultaneamente estrutura literal e simbólica, reflete a natureza vulnerável e ténue da paz e dos laços que sustentam a união da aldeia. À sua semelhança, a comunidade paira à beira do abismo.
À semelhança de Takla (Claude Baz Moussawbaa), a lojista que numa sequência observamos enquanto cola uma imagem danificada da Virgem — e que “apesar de tudo continua linda” aos seus olhos —, as matriarcas desta comunidade penam-se por salvaguardar o que lhes é mais precioso: os seus homens (os seus filhos, os seus maridos, os seus vizinhos), a sua comunidade e a sua aldeia por qualquer meio necessário. Perante a tragédia que a acomete, Takla escolhe carregar silenciosamente o seu fardo, sacrificando o seu luto pessoal, entendendo assim poder travar o derrame de sangue vizinho.
A temática do sacrifício, da abnegação, é central aos seus esforços, sendo indestrinçável quer das instâncias a que são levadas no empreendimento de proteger a sua paz precária, quer do vínculo empático que partilham enquanto mães. Esta forma de solidariedade radical, cujos alicerces se acham numa experiência coletiva da perda, apresenta-se como mote da nossa meditação sobre o possível, e potencial, lastro das suas consequências extradiegéticas.
Nadine Labaki explora de que modo o bem-estar entre os homens é ameaçado não pelo fervor religioso dos seus habitantes e tampouco por incitamento das autoridades religiosas que por si zelam, mas pelas notícias do irromper de violência em outras partes — o ensaio da paz é de tal forma ténue que qualquer grão de arroz parece poder tombar a balança, movendo os ânimos em sentidos contrários à sua manutenção.
A realizadora predica sobre a problemática todo-pervasiva da fragilidade humana, do medo e da naturalização da desconfiança do Outro — mesmo aquele que nos é vizinho e irmão — tornando manifesta a garra inexorável dos ciclos viciosos de violência a que nos acostumamos. Como veremos, o desfecho possível é, e simultaneamente não é, de natureza religiosa — e, contudo, Labaki engenhosamente relembra-nos que a religião, e, mais precisamente, o diálogo inter-religioso, pode ser o veículo através do qual se move a mudança.
E Agora, Onde Vamos? apresenta-nos uma abordagem inusitada ao engenho fílmico – um híbrido que vive entre a comédia e o drama, pontuado por números musicais, recusando comprometer-se pacificamente com categorizações simples. O manifesto tom cómico do filme e a forma como este anda de mãos dadas com a tragédia na poética que a realizadora faz da vida quotidiana – no seu representar a quase-mundanidade da guerra, da morte e da sua parafernália – laboram no sentido de evidenciar tanto a complexidade como o absurdo da vida sob tais circunstâncias.
Labaki convida-nos, espectadores, a reconhecer quer o sofrimento civil quer a sua participação ativa no sectarismo e belicismo por via das suas, aparentemente inconsequentes, reações diárias face a um percecionado “Outro” ameaçador — que os próprios constroem, alimentando-se de, e alimentando o, preconceito e o medo. A realizadora afirma amiúde a sua convicção no poder transformador do cinema, incidindo sobre a sua capacidade de promover a autorreflexão e diálogo entre os espectadores na mesma medida em que os interpela afetivamente. Neste sentido, torna-se pertinente fazer eco das suas palavras: “o filme representa mais do que um exorcismo terapêutico, […] transcende o domínio da memória pessoal em virtude da sua vida pública enquanto artefacto cultural”.
Esta consciência do poder e impacto dos media na fervura ou rescaldo dos ânimos encontra paralelos na obra em si. Em diversas instâncias a rádio, a televisão e os jornais aparentam ameaçar a precária paz vivida na aldeia. O seu poder é dual: o potencial do cinema enquanto gatilho para a mudança é sustentado pelo próprio labor da cineasta. Ao tomar parte, enquanto espectadores, na construção da obra, tomamos, literalmente, nas nossas mãos (nas nossas mentes, enfim nos nossos corações) o caminho a seguir e o(s) desfecho(s) possíveis. O título do filme é, assim, também uma interpelação ao espectador. Quando a tela escurece e os créditos passam, cabe, então, questionarmo-nos: “e agora, onde vamos?”
Inês Mariano